Portugal: o medo de extinguir
Álvaro Domingues* no Público de Terça Feira, ontem.
Como se já não bastasse a fístula do gato, os guinchos do autoclismo, o arrefecimento global e os acidentes na estrada, certo livro que por aí anda não faz nada bem ao colectivo. Temos a sombra branca, o corpo aberto, a inveja e o medo alojados no código genético, o terror a tolher-nos a vesícula, a amnésia, a gripe espanhola, o fantasma da ópera, os salários em atraso, o défice da Segurança Social, o deixa-andar, os mortos esquecidos, o fogo de Santo Antão, a escrófula no pescoço, e o mais que cabe numa mão-cheia de páginas inteirinhas a zurzir a alma pátria perdida algures entre a Cava do Viriato, o Portugal dos Pequenitos, a janela do Convento de Cristo, o cabo de Sagres e as caixas do Multibanco.
Eu, paralisado, embrulhado na consciência de mim feita em gravetos à procura dos traumas primordiais alojados nas mais finas raízes de uma floresta genealógica esquecida. Afonso Henriques não sai da porta da Casa Branca exigindo ser recebido pelo Bush para lhe dizer que os árabes estão em Lisboa e que precisa de reforço militar para libertar a cidade do eixo do mal; Egas Moniz vagueia com a corda ao pescoço na Avenida Castelhana, insistindo que tem de falar com o rei e já não têm conta os internamentos por suspeita de suicídio e ameaça à integridade de Suas Altezas os Reis de Espanha; Diniz não larga os serviços de protecção civil e o corpo de bombeiros, exigindo um plano contra os incêndios para o pinhal de Leiria; Inês morta e depois louca perde-se nas burocracias dos tribunais clamando por Pedro, pela guarda de seus filhos e por vítima de violência doméstica e assassinato; Afonso Domingues recusa-se a sair da sala do capítulo de Santa Maria da Vitória, explicando aos turistas que aquela abóbada nunca cairá e insiste que todos joguem à macaca e batam com os pés no chão para provar que assim é; Luís Vaz sentou-se no colo de Pessoa a beber cafés, a dizer mal da "Mensagem", dos heterónimos, dos heteróclitos, do Saramago, do Lobo Antunes, assediando adolescentes para uns bacanais na Ilha dos Amores; Sebastião vive errante no aeroporto de Casablanca bramindo uma espada partida, teimando que precisa de um passaporte, de um avião e de nevoeiro para regressar e que não quer saber das leis da emigração e do que diz o pessoal da torre de controlo, explicando-lhe que com nevoeiro cerrado os aviões não descolam e que nem sonhe trazer cavalos brancos para a gare das partidas; Pombal, a dormir em cartões na Rotunda do Marquês, ameaça as pessoas com um terramoto que está iminente e obriga-as a assinar uma lista de apoiantes à sua candidatura à Câmara de Lisboa sob pena de serem todos degolados como os Távora; Amélia não quer saber do acidente de Camarate, exigindo a reabertura do processo da rede bombista e o total esclarecimento das condições que levaram ao assassinato d"el rei seu esposo e do JFK; Salazar arruma carros na Avenida da Boavista e quer que lhe paguem em barras de ouro para aumentar os cofres do tesouro, vociferando contra a fuga ao pagamento da licença de porte de isqueiro, contra o Humberto Delgado, contra o Bloco de Esquerda e que manda toda a gente para o Tarrafal e que os polícias são uns tansos; Amália canta, Lúcia morreu e o Eusébio ameaça ir para o Chelsea.
A minha Maria Augusta fechou-se no sótão por causa desses fólios e jura que nunca mais de lá sai nem que tenha que comer ratos e listas telefónicas velhas e fuma obsessivamente rolos de cotão embrulhados em teias de aranha até que lhe chocalhe o cérebro mirrado sempre que move e nega a evidência em que muda se quedou fechada em si. Cai-lhe o cabelo para dentro da cabeça e com isto se entrelaçam, como no ralo da banheira, meadas enguiçadas em novelos que se enredam nas pregas azougadas dos hemisférios ressequidos.
Maria Augusta, tens que sair daí para ir votar! E ela, nada. Maria Augusta anda para a sala ver os debates na televisão! E ela, nada. Maria Augusta anda ver o meu país de marinheiros! E ela, nada. Maria Augusta, eu quero amar, amar, perdidamente! E ela, nada. Maria Augusta, o telemóvel está tocar! E ela, nada. Maria Augusta, anda ver os Morangos com Açúcar. E ela, nada. Maria Augusta, olha o nevoeiro branco! Pé ante pé, como que tomando por epifania cada degrau do sótão, Maria Augusta desce finalmente a escada. Onde? Ali na parede a esguichar do extintor! É neve carbónica, m"ôr, não vês que é neve carbónica? Hã, então é isso e eu que me julgava perdida. Neve carbónica, m"ôr, tanta retórica por causa de um extintor. São Lourenço permita que nunca mais ninguém me ponha a assar a mioleira.
E assim termina a história. O Gil foi ao São Bartolomeu do Mar oferecer uma galinha preta e uma cabecinha de cera e ficou curado. A Maria Augusta e eu habitamos outra vez o mesmo lugar. O gato curou-se da fístula e a andorinha de louça que estava na parede deixou finalmente de tomar os ansiolíticos para o impensável genealógico que lhe tolhia os movimentos.
*Geógrafo, professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
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